O país comemora trinta e quatro anos. Todos aspirávamos a que Angola fosse agora um país completamente reconciliado, com um projecto colectivo partilhado, com um pensamento estratégico nacional, uma larga e forte classe média e elevados índices de desenvolvimento humano. No entanto, o país continua a ser considerado uma sociedade de trevas, atolada nos problemas característicos dos países que estão na cauda do desenvolvimento. Com uma agravante que é o facto de ser um país com muitos recursos e forte crescimento económico mas a que não corresponde um correlato bem-estar da população.
Por outro lado, a nossa conjuntura (política, económica e social) é dominada por um problema e por um homem. O homem é José Eduardo dos Santos com sua insegurança política e suas reiteradas pretensões autoritárias. O problema é a sua sucessão, com o pesado manto de incertezas, as grosseiras manobras dilatórias, as falsas promessas que lhe são associadas e as interdições que a rodeiam. As duas questões tornam o país inseguro, obscurecem a previsibilidade do regime e mancham fortemente a sua imagem no exterior, não permitindo a sua modernização, nem a consolidação de um bom ambiente não só de negócios mas de desenvolvimento sustentado, de longo prazo.
Agora que celebramos trinta e quatro anos de independência, com os indicadores sociais tão baixos que registamos, com uma economia quase de mera exploração de recursos, JES, em vez de ser um dirigente mobilizador de vontades, apenas procura submeter todas as vontades à sua própria vontade, quer no plano político, económico e social. Para tanto, fez do seu partido o tubo de ensaio dos sistemas de controlo ditatoriais e pretende aplicar as suas experiências ao país, reforçando o partido-Estado, fortemente controlado pelo partido do Chefe, o neomercantilismo que coloca toda a economia dependente dos seus interesses de potência e o corporativismo social como mecanismo de controlo total da sociedade. A eleição é a besta negra do seu consulado. Decididamente, JES não gosta de eleições, prefere a indicação e, de preferência, que seja ele a indicar.
Chegamos pois aos trinta e quatro anos de independência muito cansados da situação de instabilidade permanente (inclusive agora nas fronteiras) de um PR que está colado ao cadeirão presidencial há trinta anos, da sua cupidez, da sua insegurança, da sua incapacidade de diálogo, com os diversos sectores da sociedade angolana (não se confunda a sua capacidade de imposição, cooptação e alienação, como capacidade para o diálogo) da sua fixação política (a reprodução do seu próprio poder) da sua fraca produtividade e do pesado custo que ele tem representado para o país, nomeadamente para as novas gerações.
Chegamos aos trinta e quatro anos de independência com a dupla consciência de que a sucessão de JES é necessária mas não se pode fazer de qualquer maneira. Mas também de que não pode o nosso sentido de responsabilidade servir de pretexto para sermos obrigados a aceitar a perpetuação de uma dinastia ditatorial. Não é porque tem na sua garagem uma série de tanques de guerra que pode insistir na sua permanência eterna e se arrogar ao direito de decretar, ele próprio, uma revisão constitucional, desrespeitando assim a Assembleia Nacional (que é representativa de todos os cidadãos e da vontade política da Nação), atropelando gravemente os seus poderes e coarctando também o direito de opinião dos cidadãos.
A propósito, o PR é um cidadão e, como qualquer outro cidadão, tem direito à opinião e a participar do debate constitucional. Mas, o PR tem a obrigação de defender e zelar pelo bom funcionamento das instituições. Não pode usar das prerrogativas de PR para as desrespeitar, para as subverter. Não pode ele próprio destabilizar o processo constituinte em curso, obrigando toda a gente a abandonar a sua opinião para sufragar a dele como sendo consensual. E, muito menos ainda, não pode fazer exigências que vão contra os valores e regras fundadoras do regime constitucional vigente que saiu de um longo processo de negociação e de transacção como forma de debelar um longo e sangrento conflito que expressava também uma crise de identidade da Nação, pois esta não se reconhecia (e não era reconhecida) em todos os seus filhos. Cabe a Assembleia Nacional fazer a revisão constitucional que se propôs, no tempo que achar útil a uma serena e ampla participação das forças políticas, das lideranças sociais, das corporações económicas, das lideranças religiosas e dos cidadãos.
Pois, trinta e quatro anos depois da independência, o PR devia perceber que está obrigado a cumprir a Lei Constitucional actual, que não estamos perante um vazio constitucional que o autoriza a governar à vista. Devia entender que como PR, como pessoa de bem, está obrigado a cumprir com os seus compromissos políticos e institucionais. Mas, acontece que agora que comemorarmos trinta e quatro anos de independência, o PR adopta uma grave conduta, que não aproveita à moralização das instituições (e ao respeito destas aos olhos dos cidadãos e da comunidade internacional) ao não convocar, este ano, a eleição presidencial, por ele prometida, em 2006. E, nada diz aos cidadãos, numa atitude que traduz um menosprezo total pela Nação. Ou, ainda, uma outra conduta do PR, mais grave e não conforme com a anunciada política de normalização das instituições, nem tão pouco com a desejada reconciliação nacional, é estar a fazer pressão e chantagem sobre a Assembleia Nacional (transformando-a num comité de especialidade do seu partido) para que esta se submeta aos seus interesses políticos, estabelecendo uma ligação, de causa/efeito, entre a revisão constitucional e a realização da eleição presidencial, protelando assim a efectivação desta eleição e, por tabela, a das eleições autárquicas.
Trinta e quatro anos depois da independência, o país não pode continuar refém de um líder que se atolou nas suas próprias contradições e está possuído pela obsessão de se eternizar no poder, que lhe retira toda a clarividência. A nação tem que encontrar uma saída. É aqui que acho útil a proposta (que já fizemos há mais de dez anos) de uma segunda câmara para a assembleia representativa: o Senado.
Digo isto por JES mas também por uma questão de princípio e prudência em relação a sua sucessão. De Gaulle que embora partidário do governo forte, não queria ser um ditador e era um patriota e um homem de apurado sentido do interesse nacional, abordou esta questão, quando se preparava para deixar o poder. Escreveu ele nas suas memórias que havia necessidade de acrescentar à autoridade do seu sucessor a força do sufrágio universal directo, pois este não teria do seu lado a legitimidade histórica de que ele gozava. JES faz ao contrário, gozando ele de “legitimidade histórica” quer acabar não só com o voto universal directo mas também com a eleição do presidente. De Gaulle pensava numa sucessão institucional. Dos Santos quer, apenas numa situação limite, uma sucessão pessoal, de maneira que ele possa continuar a reinar, em sistema absolutista, mesmo que nominalmente não seja governante mas tão-somente chefe do partido da situação, assumindo então o seu lugar cativo de deputado. Creio que é ainda assim um caminho arriscado e, por outro lado, um factor de grave degradação da qualidade da política (e dos políticos) no país.
Sou favorável a uma sucessão negociada, em termos parecidos com a sucessão de Pinochet. Sei que é um personagem antipático mas a transição pacífica no Chile é um exemplo prático que nos pode ser útil e sobre o qual não devemos ter nenhum preconceito. Daí a criação desta segunda câmara do parlamento para podermos atribuir a JES a dignidade de senador vitalício, resolvendo assim o seu problema de segurança e libertando o país para a dinâmica das novas gerações, pela concorrência e pelo mérito, em todos os sectores e escalões da vida nacional.
*Cientista político
Por Nelson Pestana (Bonavena)