domingo, novembro 30

E se Obama fosse africano?

Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

In: Jornal "SAVANA" – 14 de Novembro de 2008

terça-feira, novembro 4

"Angola é governada por criminosos"

"Angola é governada por criminosos" - ainda hoje esta frase ecoa na minha mente.
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Só eu sei o que senti quando ouvi as declarações de Bob Geldof. E senti-o de tal maneira que havendo certamente palavras elegantes para descrever esses sentimentos, não sou capaz de as reconhecer sequer. Assim, prefiro nem tentar expressar com rigor das minhas emoções. Deixar-me-ei por isso levar pela imaginária e agradável sensação de estar serenamente sentado a beber batido de abacate, com bastante leite condensado.
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Se é verdade que Angola é governada por criminosos, então não deixa de ser verdade que estas eleições foram fraudulentas e que os observadores internacionais são cúmplices na acção criminosa do Estado angolano contra o seu próprio povo e sua única fonte de legitimidade.
Se é verdade que Angola é governada por criminosos, então não deixa de ser verdade que a Comunidade Internacional dá amparo a estes crimes porque, tendo poderes para o efeito, não faz o exame necessário a respeito desses crimes e simplesmente ignora as suas vítimas.
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Se é verdade que Angola é governada por criminosos, então o povo angolano é criminoso porque o Governo de Angola é um GOVERNO DE UNIDADE E RECONCILIAÇÃO NACIONAL.
E se querer um Governo destes é crime, então o povo angolano é criminoso porque escolheu e aceitou para si um Governo criminoso constituído por diferentes forças partidárias.
Por favor Sir Bob Geldof, explique ao povo de Angola que as eleições agora realizadas não foram livres, embora tenham concorrido 13 formações políticas diferentes que realizaram as suas campanhas em pé de igualdade, suportadas com meios financeiros públicos e com total liberdade de reunião e manifestação; que não foram justas, apesar de haver já partidos políticos angolanos que vieram a público declarar que aceitam os resultados destas eleições; e que não foram transparentes, não obstante a constante e contínua informação / formação dada aos angolanos sobre o processo eleitoral.
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Não, o processo eleitoral angolano não foi perfeito, o sistema eleitoral angolano não é perfeito. Mas se também não o é qualquer outro processo eleitoral realizado com a periodicidade prescrita pelas leis dos países onde decorrem, porque havemos de esperar que o processo eleitoral angolano seja imaculado?
Se também não são perfeitos outros sistemas eleitorais, porque havemos de exigir que o sistema angolano seja isento de vícios? Quiçá os mesmo vícios de outros países que tenham adoptado um sistema eleitoral semelhante…Houve dificuldades e falhas. Foram assumidas. Ninguém se escondeu ou procurou justificar o injustificável. Pediu-se desculpa e ofereceu-se a solução, prevista na lei. Deve haver responsabilização por estas falhas? Devem ser tiradas consequências políticas? Se sim, então que assim seja! Os homens deste país já mostraram que sabem assumir as suas responsabilidades e não têm medo do mundo. O FMI que o diga...
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O facto é que Bob Geldof fundou a sua opinião na comummente aceite ideia: Angola é governada por criminosos.É mais fácil aderir à opinião generalizada e escutar apenas pessoas que estão de passagem, de pessoas que têm uma opinião tendenciosa ou de pessoas que simplesmente ignoram a realidade angolana, do que estudar as questões a fundo, no terreno e de forma imparcial; do que procurar compreender o que foi, o que é e o que se quer que Angola seja; do que contribuir com projectos, com ideias, ou simplesmente com conselhos ou sugestões modestas.
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Desculpem mas tenho de repetir: se Angola é Governada por criminosos, o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional, composto por diferentes partidos políticos angolanos, tem a cobertura de toda a comunidade internacional, na sua acção criminosa, e isso inclui a do Sir Bob Geldof pela forma leviana, irresponsável e pior, inconsequente como vem a publico fazer denúncias graves sem que tenha sido apresentado qualquer tipo de suporte a respeito.
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Falar de Angola é fácil porque estamos catalogados como um país do terceiro mundo. Mas pergunto-me: qual a verdadeira diferença entre os países do terceiro mundo e os outros quando em ambos existe fome? (EUA); quando em ambos pessoas morrem por falta de assistência médica (Portugal); quando em ambos não existe liberdade religiosa (França); quando em ambos não existe igualdade salarial entre homens e mulheres (Itália) ou quando entre ambos, por crenças religiosas se matam pessoas? (Irlanda); ou quando em ambos os candidatos as eleições legislativas são assassinados? (Holanda)Falar de Angola é fácil simplesmente porque basta descontextualizar a realidade e subvertê-la aos critérios culturais de quem fala.
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Aprendi na faculdade que devemos sempre procurar saber quem faz a História, ou melhor, quem a conta. O mesmo facto, testemunhado por duas pessoas diferentes, é contado de forma diferente porque cada uma delas tem a sua própria hierarquia de valores e interpreta a realidade e tomando decisões em conformidade com essa hierarquia e outros factores que influenciam o conhecimento.
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E o problema não é, o facto do "Governo angolano não saber conviver de forma saudável com a liberdade de imprensa" como diz o comunicado da SIC. O problema que existe na verdade é o do exercício abusivo ou irresponsável da liberdade de imprensa.Responsabilizar civil ou até criminalmente as pessoas pelo exercício abusivo ou irresponsável das suas liberdades pode não bastar para repor a ordem pública. Se necessário for, o Estado pode e deve limitar ou mesmo suspender o exercício de liberdades fundamentais. Não estou a sugerir que sejam agora intentadas acções judiciais contra Bob Geldof ou a SIC. Estou apenas a dizer que defendo o meu país.
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Não estou com isto dizer que o Estado angolano pode suspender liberdades fundamentais de cidadãos estrangeiros que nem sequer se encontram no Pais. Estou apenas a dizer que não sei se foi o Estado angolano que inviabilizou deliberada e injustificadamente a emissão dos vistos de alguns repórteres portugueses ou se havia fundamento legal para o efeito ou ainda outro qualquer, minimamente atendível, que inviabilizasse a emissão dos vistos. Sei no entanto, e por isso não deixo de considerar intrigante, que a SIC omite, deliberadamente ou por mero esquecimento, o motivo porque os vistos não foram emitidos.
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O exercício da liberdade de imprensa, deve ser um exercício de responsabilidade, deve ser um exercício de informar e ser informado com objectividade, com imparcialidade e com rigor. Sem estes requisitos, mínimos, a informação deixa de ser notícia e passa a ser um artigo de opinião, sem a dignidade que se quer para um serviço noticioso. Sim. Angola é um Estado de Direito e não o é menos do que outros Estados onde por vezes, às vezes constantes, as leis também são atropeladas.
Não. Angola não deixou de existir com o fim da guerra e nem foi (re)descoberta com o início do seu crescimento económico.
Ruka Passos