segunda-feira, janeiro 23

Que fizeram dos nossos sonhos, Manuel?

Este post foi enviado através de e-mail por um leitor amigo. A sua publicação esteve pendente até hoje devido ao seu conteúdo, que poderia influenciar de alguma forma aquilo que era opção de voto dos leitores do Blog, que exercem o direito de cidadania em Portugal (votam nas Eleições Presidenciais de Portugal). Agora, depois do resultado do escrutínio, sendo este um espaço sem conotação política, é pertinente a sua publicação e a mensagem diz o seguinte:

Prezado(a) MN

Sou português e não angolano, mas gosto de visitar o seu excelente blog.
O que me traz aqui é o facto de ter encontrado um texto de apoio à candidatura de Manuel Alegre à presidência da República Portuguesa, assinado por Mesquita Brehm. Este texto refere-se a acontecimentos que envolveram Manuel Alegre em Angola, acontecimentos que também fazem parte da História de Angola. Venho por isso propor a publicação no seu blog dos excertos que envio em anexo, a fim de dar a conhecer os acontecimentos referidos aos angolanos que o visitam. O texto completo está disponível no site de Manuel Alegre, em www.manuelalegre.com
As melhores saudações
.
Ass: Denudado
www.amateriadotempo.blogspot.com



Que fizeram dos nossos sonhos, Manuel?
[António Mesquita Brehm, 11.10.2005]

(...)
Em 1962 encontrei-me, pela primeira vez, com Manuel Alegre em Luanda. Sacámos o santo e a senha da algibeira para nos identificarmos e, a partir daquele breve instante, metemo-nos numa das maiores aventuras das nossas vidas. Combinámos formar um único grupo com armas na mão e derrubar o regime de Salazar.

A guerra colonial havia começado tempo antes, centenas de colonos portugueses tinham sido cruelmente abatidos nas matas do norte de Angola e alguns milhares de negros sofriam agora perseguições e morte nos musseques de Luanda. A vergastada emocional paralisou os nervos da população. Mas toda a gente lúcida sabia que se tornara imperioso estancar aquele martírio inútil dos nossos povos.
Se tomássemos o poder em Luanda e controlássemos Angola, faríamos um ultimato a Salazar e encetaríamos negociações com os movimentos de libertação para discutirmos as condições da independência do território protegendo não só os direitos naturais dos angolanos como ainda de todos os portugueses que ali viviam.

Foi então, às vésperas do golpe militar, que um oficial nosso compatriota nos traiu (ele e alguns mais) e nos denunciou à PIDE acusando-nos de estarmos a vender Angola às forças de Satanás. Toda a cabeça do grupo revolucionário foi presa e encurralada na Prisão de São Paulo de Luanda. Nas celas pegadas às do Luandino Vieira, do António Jacinto e do António Cardoso, cujos nomes ficaram bem gravados na literatura angolana.

(...)
Pois isto aconteceu muitos anos antes da revolução do 25 de Abril. E teria certamente apontado novo caminho ao futuro de Portugal e de todas as nossas antigas colónias africanas. Os poderes oficiais, e aquela cáfila que deles se aproveita, fizeram uma lavagem da História. Nunca falaram sobre o golpe militar de 1963 em Luanda. Mas o nosso processo policial está fechado a sete chaves, desde há muito, nos Arquivos da PIDE e um dia será detalhadamente revelado para espanto de muita gente. Também eu publicarei mais tarde meu livro de memórias sobre este período da nossa vida colectiva.

(...)
É meu dever recordar a nossa saga de Angola, a figura lendária do Silva Araújo com o seu esquadrão de 500 guerreiros africanos, o major José Ervedosa que, no comando dos aviões de bombardeamento das bases da Ota e do Montijo da Força Aérea Portuguesa lançou as bombas de napalm nos sítios desertos da região de Malange para desrespeitar as ordens de massacrar os milhares de trabalhadores em greve da Baixa do Cassange, o Felisberto Lemos, gerente da Livraria Lello de Luanda, onde se organizaram também muitos encontros clandestinos, o comandante Jeremias Tschiluango dos guerrilheiros do Norte que logo se dispôs a levantar esquemas logísticos para nos ajudar a ocupar Luanda, o chefe Matifoge que roubou armas e munições nos quartéis portugueses.
E aqueles homens como o Vítor Barros, deputado da nossa Assembleia Nacional, que no Huambo nos abriu as portas dos gabinetes dos chefes militares das tropas da cidade, e o engenheiro Fernando Falcão que no Lobito havia preparado o levantamento da sua população contra o regime de Salazar.
E tantos outros oficiais e praças do nosso exército colonial e incógnitos civis que, desde a primeira hora, se integraram no movimento para a defesa da Liberdade.

E também muitos poetas e intelectuais (que palavra horrível) como o Alexandre Dáskalos, o Cochat Osório, o Adolfo Maria, o Henrique Abranches, o Mário António, o Aires de Almeida Santos, o Neves e Sousa, e os nossos camaradas do 1º Encontro de Escritores de Angola realizado no Lubango em Janeiro de 1963. Porque as revoluções também se preparam com poetas, escritores e artistas.

Mas a hora chegara.
E o nosso Manuel Alegre, o nosso grande poeta da gesta portuguesa e da nossa Resistência, foi também então um dos grandes líderes desta revolta armada. E muito deverá contar aos portugueses sobre aquelas horas transcendentes.

Por fim desejo contar dois episódios acerca dele nesse período que nunca esqueci. O primeiro aconteceu no pátio da nossa prisão na hora do recreio quando, de repente, recebemos a visita de São José Lopes, Director Geral da PIDE, que vinha "inspeccionar" o nosso comportamento. Perguntou diversas futilidades sobre a prisão, estacou diante do meu companheiro e disparou: -- "Diga lá, senhor Alferes, se esta situação estivesse invertida e você me tivesse preso, o que faria?". Manuel Alegre não vacilou um segundo e respondeu-lhe com firmeza: -- "Olhe, senhor Director, mandava-o prender sem hesitações para ser julgado e depois condenado, sem dúvida". São José Lopes, o senhor todo-poderoso da polícia secreta em Angola, ficou perplexo. Não esperava por tal desafio, esteve algum tempo calado e depois sentenciou: -- "O senhor Alferes é um homem de coragem". Qual seria o preso, naquelas condições, que o enfrentaria com tal dignidade?

O segundo passou-se em minha casa quando fomos libertados, muitos angolanos nos vieram saudar. Recordo que nessa noite de alegria os funcionários negros da Texaco (a estação de serviço ao lado) nos bateram à porta para nos entregar duas galinhas vivas e era essa a singela homenagem de agradecimento pela luta que sempre travámos junto deles. Foi um bonito ritual de que só, muitos anos depois, entendi no seu verdadeiro significado. Madalena, minha fiel lavadeira da Vila Alice, a pequena Lídia que se esgueirava pelos becos com nossas mensagens, Simão, o carpinteiro do Rangel, que dirigia o grupo dos batedores do bairro e alguns outros, lá estavam presentes à nossa espera, as bocas rasgadas no melhor sorriso que vi até hoje. Manuel Alegre ficou com as lágrimas a brilhar de emoção quando eles o abraçaram. -- "Somos todos irmãos", lhes disse. "Um dia os nossos povos caminharão sempre juntos".
(...)

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