sexta-feira, novembro 18

Para lá do Asfalto*

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Para lá do asfalto, a menos de 95 quilómetros dos Hummer’s, dos Jeeps Toyota VX Prado e Rav4, um pouco distante dos concursos de “Miss”, existe uma “Ombala” chamada Tchiaia.
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Quase perdida em arbustos, fica a quarenta minutos a pé no sentido leste da via do Samboto. É a sede de cinco aldeias, nomeadamente, Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio e Tchiaia, todas elas pertencentes à comuna do Sambo, município do Tchikala Tcholohanga, província do Huambo. Lá onde os telemóveis são só brinquedos dos adultos visitantes, onde a energia eléctrica só está na memória de alguns que conhecem, quando muito, a sede da comuna. As crianças têm um sonho: o de receberem enxadas e sementes para sustentarem suas famílias.

A aldeia ressurgiu há dois anos e carece de quase tudo: desde à alimentação, serviços básicos de saúde, acesso à educação e ensino, até ao apoio na actividade agrícola – a principal fonte para o auto-sustento. Entre os populares, há os retornados da Zâmbia, alguns são viúvos, outros velhos incapacitados e boa parte das crianças é órfã.
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O apoio do PAM terminou em Maio último enquanto que as últimas chuvas com granizo destruíram as plantações. Hoje, o sustento das famílias, cuja dieta forçada é a batata-doce, é uma responsabilidade partilhada com a própria criança logo que completa 11 anos. Vive-se do cultivo e do fabrico de carvão. O ganho diário pelo biscate no campo é 200Kz por adulto e 150Kz quando se é mais jovem; já no carvão, uma criança pode fabricar até cinco sacos de cada vez. “Mete-nos até vergonha ter de pedir ajuda, nós que sempre fomos um povo trabalhador”, desabafou um adulto.

Desde cedo, as crianças dominam a auto-medicação usando raízes silvestres. É a alternativa face à inexistência de um posto de saúde e à escassez de dinheiro para pagar um enfermeiro particular pelo tratamento. “Quase todos os recém-nascidos faleceram este ano, só na sede da Ombala. Até agora, o número total é de 17 óbitos, dos zero aos 2 anos e meio”, revelaram alguns líderes da comunidade. A fonte de água para o consumo é um dilema: todo o mundo sabe que é antiga e tem bichos, incluindo cobras, mas não existe outra alternativa.

A única escola foi construída por uma ONG, em 1996, e a sua cobertura foi saqueada durante o conflito armado. Nela, três professores atendem 300 crianças, da iniciação à segunda classe, sendo parte considerável dos alunos maiores de 14 anos. Os que passam para a 3ª classe enfrentam sete quilómetros a pé para chegarem à escola na sede da comuna de Sambo.

O consumo excessivo do kaporroto, aguardente produzido localmente, é companhia dos adultos às tardes, distraindo uns e fazendo brigar outros. Bebe-se mais do que se come. Pelas manhãs, o movimento das crianças divide-se em dois galhos: umas indo à lavra, outras para a escola. Destinos diferentes, mas algo em comum: todas cheias de feridas de bitacaias e suas roupas de tão sujas e rotas (na vida real) até parecem indumentárias de teatro comunitário.

Se o Mpla é o único partido na zona, a igreja católica ganha concorrente, a adventista, que já tem um fiel dedicado (a aldeia tem mais de 200 homens). Mas a última campanha de evangelização dos adventistas provenientes do Huambo, durante um fim-de-semana, deu mais pontos aos católicos, de si já líderes das simpatias em função de alguma caridade recente aos órfãos e vulneráveis: tudo porque, no culto, um visitante terá dito que “os irmãos que adoram no domingo, adoram no mesmo dia que os palhaços”, o que ofendeu até as autoridades locais. Nos finais de semana o futebol é rei, sem técnica, táctica e onde ninguém sabe perder; mas vale a intenção: “assim as crianças se distraem das makas da guerra… e nós também”.

“Kwachas” e “Mplosos” de ontem, angolanos unidos hoje pela paz, há dois anos que lutam pela sobrevivência, pelo direito de recomeçar a vida em Tchiaia, sua aldeia do coração. Qualquer apoio é para ontem e aqui fica o SOS. Para além do governo de Angola, quem será o rico, o político, o amigo ou filho do Huambo que pode ajudar esse povo?

Por:
Gociante Patissa, Huambo, 30 de Outubro de 2005
In Ondaka usongo
*Título da autoria de MN

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